"(...) o 'corpo cotidiano' é entendido geralmente como um corpo automatizado, em que o agir está muitas vezes desligado do pensamento e da atenção. No dia-a-dia, estaríamos em geral dispersos ou "no piloto automático", desempenhando tarefas e cumprindo papéis de modo mecânico, comportando-nos como "maus atores". O corpo cotidiano careceria da energia e da vivacidade convocadas pelos processos artísticos. Nessa caracterização da experiência cotidiana, está subentendida a existência de um meio social em que vigoram certos modos de lidar com o corpo, os gestos, as ações e o pensamento. Entender o cotidiano como o lugar da automaticidade das ações e dos comportamentos é reconhecer uma espécie de "alienação" ou de cisão na subjetividade, a predominância de uma experiência que fragmenta corpo e mente."
"Na sua positividade, o comportamento cotidiano é funcional e adaptativo,"dócil e produtivo" (Michel Foucault), o que torna possível seu claro engajamento nos organismos sociais. No entanto, a estabilidade dos hábitos e das representações cotidianas implicaria também um "recuo em relação a nossa própria obscuridade" (Maurice Blanchot). Aquilo que foge ao domínio das representações, que emerge nas lacunas e fissuras do simbólico, que flutua numa região de incertezas, tende a ser ignorado e esquecido.
A compreensão dessa negação e reatividade exige que abordemos o processo incessante de produção de representações, que opera num nível microscópico, na construção das próprias percepções. O contato constante do "corpo-mente" com estímulos variados faz originarem-se, simultaneamente, sensações e percepções, construídas e interpretadas segundo padrões habituais aprendidos e herdados. A experiência ganha forma e estabilidade nas representações elaboradas a partir da seleção de elementos recorrentes e regulares. O corpo cotidiano se constitui no recorte e na ligação de seus fluxos, na canalização de seus apetites e energias.
Pode-se dizer que, sem tais mecanismos - que estão na base de nossos hábitos -, a vida cotidiana seria impossível. Ela exige um certo grau de constância, previsibilidade, convenção e regularidade. Porém, na raiz desse processo, encontra-se também um desejo de controle, de fixação e permanência, que tende a negar a singularidade do acontecimento. O fascínio da repetição e o desejo de apossar-se das experiências expressam também um ressentimento contra a impermanência de todos os fenômenos. O cotidiano torna-se assim o lugar de um esquecimento, um perder-se nas ocupações.
A arte pode aparecer justamente como espaço possível em que se sustenta uma abertura para o que não cai nas malhas da representação."
"A desmontagem do corpo cotidiano significa, no limite, tornar acessível a experiência da "não-forma". O corpo informe se mantém no fluxo contínuo de sensações, afetos e percepções que aparecem e se dissolvem incessantemente, sem querer agarrá-las ou rejeitá-las. A vivência desse fluxo exige o desprendimento progressivo do "dialogo interior" que compõe costumeiramente o nosso teatro mental. Georges Bataille, escrevendo sobre o que chama de "experiência interior", afirma a necessidade de se sair da região das palavras, essa "multidão de formigas que não descansam", para poder habitar os "movimentos interiores vagos, que não dependem de nenhum objeto nem de nenhuma intenção" (1992: 22). Roland Barthes, de modo semelhante, refere-se a uma "idiosfera", ou "um sistema de linguagem que fala na cabeça de cada um" (2003: 190).
Essa série de visões subjetivas é infinita, operando como uma espécie de "trabalho forçado da linguagem". É o que chamei de produção incessante de representações. Ela pode produzir uma ilusão de consistência do sujeito, que preenche e fascina.
Desviar-se desse verdadeiro "sistema de forças", que nos prende numa espécie de fantasmagoria, mobiliza, muitas vezes, ansiedades relativas à desintegração de nossa imagem e à morte. Artaud se refere à "angústia que está na base de toda verdadeira poesia". O fazer poético exigiria a conquista da intimidade com os espaços informes, que podem conduzir à dissolução da própria representação do "sujeito". "Escrevo para morrer, para dar a morte sua possibilidade essencial" (Franz Kafka). Descobrir a "morte do sujeito" como experiência limite torna-se um processo intimamente ligado ao emergir da linguagem poética.
É dessa familiaridade paradoxal com o informe e com a impermanência, vivida no próprio corpo e nas relações, que poderá surgir uma nova qualidade de "ação" e de "presença". A princípio, a experiência da "não-forma" é também uma "não-ação". Ela exige o desapego de qualquer noção de projeto, qualquer expectativa de resultados. A dificuldade reside justamente na suspensão dos objetivos, das relações de uso e da nossa usura (o "sujeito" se constrói a partir de seus "afazeres"). A rigor, nada menos espetacular e teatral. No entanto, do mergulho nessa ausência, nesse "não querer agarrar nem rejeitar", brota uma singular disposição. A "presença" pauta-se então numa atitude desarmada, num corpo que não se defende dos fluxos que o atravessam, surgindo e desaparecendo incessantemente. A ação pode nascer sem negar essa dimensão obscura e ilimitada de onde ela mesma provém."
(do artigo O ator-performer e a crítica do “corpo cotidiano”, de Cassiano Sydow Quilici)
Link para ler o artigo na íntegra.
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