28 de novembro de 1947 - Como criar para si um corpo sem órgaõs

"(...)O Tonal parece ter uma extensão disparatada: ele é o organismo e também tudo o que é organizado e organizador; mas ele é ainda a significância, tudo o que é significante e significado, tudo o que é suscetível de interpretação, de explicação, tudo o que é memorizável, sob a forma de algo que lembra outra coisa; enfim, ele é o Eu, o sujeito, a pessoa, individual, social ou histórica, e todos os sentimentos correspondentes. Numa palavra, o Tonal é tudo, inclusive Deus, o juízo de Deus, visto que ele "constrói as regras por meio das quais apreende o mundo, logo ele cria o mundo, por assim dizer." E, no entanto, o Tonal é apenas uma ilha. Porque também o nagual é tudo. E é o mesmo todo, mas em condições tais que o corpo sem órgãos substitui o organismo, a experimentação substitui toda interpretação da qual ela não tem mais necessidade. Os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas conjunções de afectos, o vento, uma segmentação fina, as micro-percepções substituíram o mundo do sujeito. Os devires, devires-animal, devires-moleculares, substituem a história individual ou geral. De fato, o Tonal não é tão disparatado quanto parece: ele compreende o conjunto dos estratos, e tudo o que pode ser relacionado com os estratos, a organização do organismo, as interpretações e as explicações do significável, os movimentos de subjetivação. O nagual, ao contrário, desfaz os estratos. Não é mais um organismo que funciona, mas um CsO que se constrói. Não são mais atos a serem explicados, sonhos ou fantasmas a serem interpretados, recordações de infância a serem lembradas, palavras para significar, mas cores e sons, devires e intensidades (e quando você se torna cão não vai perguntar se o cão com o qual você brinca é um sonho ou uma realidade, e se é "a puta da tua mãe", ou outra coisa ainda). Não é mais um Eu que sente, age e se lembra, é "uma bruma brilhante, um vapor amarelo e sombrio" que tem afectos e experimenta movimentos, velocidades. Mas o importante é que não se desfaz o Tonal destruindo-o de uma só vez. É preciso diminuí-lo, estreitá-lo, limpá-lo, e isto ainda somente em alguns momentos. É necessário preservá-lo para sobreviver, para desviar o ataque nagual. Porque um nagual que irrompesse, que destruísse o Tonal, um corpo sem órgãos que quebrasse todos os estratos, se transformaria imediatamente em corpo de nada, autodestruição pura sem outra saída a não ser a morte: 'o Tonal dever ser protegido a qualquer preço'.(...)"

(do livro Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 3, de Gilles Deleuze e Félix Guattari)

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